Em 10 de dezembro de 1920 nascia um dos grandes nomes da literatura brasileira (quiçá mundial!): Clarice Lispector. 

Ucraniana de nascença, mas brasileira desde criança, Chaya Pinkhasovna Lispector – seu nome de batismo – pertence à terceira fase do modernismo brasileiro, chamada de “Geração de 45”. Mas, o que você sabe sobre Clarice Lispector? Leia nosso artigo de hoje!


Quem foi Clarice Lispector?

Filha dos judeus Pinkhas Lispector e Mania Krimgold Lispector, Clarice nasceu em Tchetchelnik, cidade da Ucrânia. Porém, por causa da Guerra Civil Russa e da perseguição aos judeus, seus pais resolveram fugir e vieram ao Brasil, em 1921.

Inclusive, o nome Clarice foi escolhido pelo seu pai com o intuito de esconder a origem da família. 

A primeira cidade em que viveu com a família foi Maceió. Desde criança Clarice já se interessava pela literatura e pelas artes, visto que estudou várias línguas (português, francês, hebraico, inglês e iídiche – língua derivada do alto alemão, historicamente falada pelos judeus Ashkenazi) e também teve aulas de piano. Além disso, já nessa época escrevia os primeiros poemas. 

Em 1930 ficou órfã de mãe, o que a levou a compor sua primeira peça para piano, em homenagem à matriarca. 

Em 1935, seu pai decide mudar-se para o Rio de Janeiro. Em 1939, Clarice ingressa na Escola de Direito da Universidade do Brasil, hoje conhecida como Universidade Federal do Rio de Janeiro, dedicando-se totalmente à sua grande paixão: a literatura. Um ano depois publica seu primeiro conto: “Triunfo”.

Após a morte do pai, em 1940, Clarice então começa a carreira de jornalista, trabalhando na Agência Nacional, Correio da Manhã e Diário da Noite como redatora e repórter. Nesta mesma época apaixona-se pelo escritor Lúcio Cardoso, mas o relacionamento não deslanchou pelo fato dele ser homossexual, tornando-se, então, grandes amigos.

Em 1943 casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos: Pedro e Paulo. Neste mesmo ano lançou seu primeiro livro: “Perto do Coração Selvagem”. A obra foi aclamada pela crítica e chegou a ser comparada com livros de grandes escritores como Virginia Woolf, James Joyce e Jean-Paul Sartre. A publicação ganhou o prêmio Graça Aranha, como melhor romance do ano. 

Pelo marido ser cônsul, os dois viveram um tempo viajando pelo mundo. Entretanto, o casal decidiu se separar em 1959 e Clarice voltou ao Rio com os filhos. 

Ao retornar ao Brasil, a autora passou a escrever para a coluna Correio Feminino, sob o pseudônimo de Helen Palmer. Mais tarde, assumiu a coluna Só para mulheres, do Diário da Noite, como “escritora-fantasma” da atriz Ilka Soares. 

Em 1961 ganhou o Prêmio Jabuti – tradicional prêmio literário do Brasil – pelo livro de contos “Laços de Família”. No ano seguinte, recebeu o prêmio Carmen Dolores Barbosa.

Anos depois, em 1966, um episódio marcou a sua vida. Após deixar um cigarro aceso e adormecer, quase incendiou seu quarto. As queimaduras em seu corpo a deixaram internada por dois meses, o que gerou uma forte depressão. 

Mesmo assim continuou escrevendo, dessa vez para o Jornal do Brasil, o que a tornou bastante popular. Logo depois começou a fazer entrevistas com políticos e artistas para a extinta revista Manchete. Na mesma época ganhou mais um prêmio, Golfinho de Ouro, pelo seu romance “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”. Em 1976 recebeu um prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto de sua obra. 

Um ano depois, em 1977, a escritora descobre um câncer no ovário, porém como foi descoberto tardiamente, não tinha muito o que ser feito. Clarice morreu em 09 de dezembro de 1977 (sim, um dia antes de seu aniversário!), aos 57 anos.

Sua última obra foi “A Hora da Estrela”, sendo considerado o mais surpreendente que escreveu, por se afastar da inflexão intimista que caracteriza seus livros. 

Principais obras

Perto do coração selvagem (1942)

O Lustre (1946)

A Cidade Sitiada (1949)

Laços de Família (1960)

A Maçã no Escuro (1961)

A Legião Estrangeira (1964)

A Paixão Segundo G. H (1964)

O Mistério do Coelho Pensante (1967)

A Mulher que Matou os Peixes (1968)

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969)

Felicidade Clandestina (1971)

Água Viva (1973)

A Imitação da Rosa (1973)

Via Crucis do Corpo (1974)

Onde Estivestes de Noite? (1974)

Visão do Esplendor (19750

A Hora da Estrela (1977)

Escute audiolivros de Clarice Lispector

A Hora da Estrela

Pouco antes de morrer, em 1977, Clarice Lispector decide se afastar da inflexão intimista que caracteriza sua escrita para desafiar a realidade. O resultado desse salto na extroversão é A Hora da Estrela, o livro mais surpreendente que escreveu. Se desde Perto do coração selvagem, seu romance de estreia, Clarice estava de corpo inteiro, todo o tempo, no centro de seus relatos, agora a cena é ocupada por personagens que em nada se parecem com ela.

A nordestina Macabéa, a protagonista de A Hora da Estrela, é uma mulher miserável, que mal tem consciência de existir. Depois de perder seu único elo com o mundo, uma velha tia, ela viaja para o Rio, onde aluga um quarto, se emprega como datilógrafa e gasta suas horas ouvindo a Rádio Relógio. Apaixona-se, então, por Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino, que logo a trai com uma colega de trabalho. Desesperada, Macabéa consulta uma cartomante, que lhe prevê um futuro luminoso, bem diferente do que a espera.

Clarice cria até um falso autor para seu livro, o narrador Rodrigo S.M., mas nem assim consegue se esconder. O desejo de desaparecimento, que a morte real logo depois consolidaria, se frustra.

Entre a realidade e o delírio, buscando social enquanto sua alma a engolfava, Clarice escreveu um livro singular. A Hora da Estrela é um romance sobre o desamparo a que, apesar do consolo da linguagem, todos estamos entregues.

— JOSÉ CASTELLO, Jornalista, escritor e Mestre em Comunicação pela UFRJ


Um sopro de vida

“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.” Com essas palavras, Clarice Lispector convida o leitor para uma viagem única. “Um sopro de vida” e “A hora da estrela” foram escritos simultaneamente, movidos pela mesma pergunta. “Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que se faz de si mesmo.” Questionamento agravado pela constatação: “E há também os meus imitadores (…) algumas pessoas que tiveram o mau gosto de serem eu.” Entre elas, os críticos são os que com maior impertinência e constância tentam imitá-la, reduplicando, em suas análises, a ambiguidade radical atribuída à pessoa Clarice Lispector. Com isso, seus livros se transformam sempre num mergulho no infinito de uma identidade à deriva. “Um sopro de vida” (e “A hora da estrela”) deveria(m) ter encerrado essa monótona romaria. Por que não imaginar que a pessoa Clarice foi pretexto para que a persona da escritora, em sua pluralidade, pudesse triunfar?

Hipótese que responde à convocação: “Se alguém me ler será por conta própria e autorrisco.” E, correndo riscos, “Um sopro de vida” sugere instigante paralelo. Em 1914, Miguel de Unamuno publicou “Niebla,” desconcertante romance no qual o protagonista, Augusto Pérez, resolve virar autor de seu destino. Em “Um sopro de vida,” Clarice imagina uma personagem, Ângela Pralini, através da qual dialoga consigo mesma e, sobretudo, ensaia afastar-se de seu estilo. Isto é, afastar-se de si mesma para evitar o “pior plágio”. E, bem ao contrário de Unamuno – que mantém Augusto Pérez em rédeas curtas –, Clarice é transformada pelo contato com Ângela Pralini. Claro que, em “A hora da estrela,” a personagem Macabéa levará esse gesto ao extremo.

“Estamos à beira de uma eclosão. À beira de conhecer a nós mesmos. À beira do ano 2000.” Palavras escritas, não esqueçamos, em 1977. Para reconhecer sua rara força e atualidade, precisamos inventar novas leituras dos textos de Clarice Lispector. Atitude que provavelmente agradaria a quem propôs: “Escrever é uma indagação. É assim:?”

— João Cezar de Castro Rocha, Professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador do PRONEX (CNPq) / PUC-RJ


Laços de família

 

O texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com frequência numa voltagem de intenso lirismo. Mas que não se engane o leitor. Em poucas linhas, será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico. Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras que se tornam fluidos e erradios, como o que é dado ao leitor a compreender acerca da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma estratégia, o cotidiano dos personagens de Laços de família, cuja primeira edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia a dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer.

Nesta coletânea de contos, os personagens – sejam adultos ou adolescentes – debatem-se nas cadeias de violência latente que podem emanar do círculo doméstico. Homens ou mulheres, os laços que os unem são, em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.— LUCIA HELENA, Pós-Doutorada em Literatura Comparada pela Brown University, EUA, e autora do livro Nem musa, nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector


Água viva

Desde seus primeiros textos Clarice Lispector anuncia um brilhante projeto literário. “Água viva”, publicado em 1973, adensa o processo característico de sua narrativa, enfatizando-lhe a fragmentação, a contaminação do romanesco com o lírico e o abrandamento das linhas descritivas e representacionais, recursos menos acentuados em outras de suas obras, anteriores e posteriores.

A trama do livro é tênue, o que faz dele “um romance sem romance”. Um eu, declinado no feminino, escreve a um tu, no masculino, expondo suas ânsias e procuras, num discurso de fluidez ininterrupta entre o delírio, a confissão e a sedução: “Para te escrever eu antes me perfumo toda. Eu te conheço todo por te viver toda.” O eu e o tu de “Água viva” ganham dimensões permutáveis de significação, integrando-se com o não humano: a natureza, as palavras, os animais, a “coisa” ou o “it”. A linguagem se espessa numa densa selva de palavras e a obra descortina voraz processo de correspondências que interconectam vida, paixão e violência.

Obsessivamente, a protagonista de “Água viva” busca surpreender as intrincadas relações entre o instante fugidio e sua inscrição no espaço. Sem nome, escondida sob o pronome eu, a personagem procura entender o significado da solidão e o de seu estar no mundo, no desencadear dos instantes que prefiguram um presente contínuo onde os limites cada vez mais esgarçados entre o que é interior e exterior à personagem desaparecem. Nesse lugar “enfeitiçado”, em linguagem incandescente, escreve Clarice Lispector Seu texto faz fluir o sentimento de agora e, paradoxalmente, interliga a petrificação e a mudança.

“Água viva” é um lindo poema em prosa, no qual se comemora a vida de tudo o que, intensamente, é. Sem receitas para decodificar o mundo enfeitiçado da incitante narrativa, o leitor toma consciência de que já não dispõe de modelos para ler, nem para entender Clarice Lispector.

– Lucia Helena, Professora titular de Literatura Brasileira da UFF. Autora, dentre outros livros, de Nem musa nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector.


Felicidade clandestina

Desde o início, Clarice Lispector recusou a escravidão dos gêneros. Escrevia por fragmentos que depois montava. Escrevia aos arrancos, transcrevendo um ditado interior. As estruturas clássicas não faziam parte desse ditado. Seu olhar passava por cima das regras, quase voraz em sua busca da essência.

Este livro bem o demonstra. É composto por contos escritos em épocas diversas da vida de Clarice. E por não contos. Muitos deles – como “Felicidade clandestina”, que dá título ao livro – foram publicados no Caderno B do Jornal do Brasil. Como crônicas. Que também não eram crônicas.

Convidada em 1967 para escrever no JB, Clarice deparou-se com um fazer literário novo. Logo negou os padrões vigentes: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gêneros. Gêneros não me interessam mais.”

E “isto” era a mais pura e rica literatura. Nos contos / crônicas / textos – que eu, como subeditora do Caderno recebia semanalmente, Clarice se expunha em recordações familiares e de infância. Sua irmã Tania ainda se lembra da menina, filha de livreiro, que encontramos em “Felicidade clandestina”, atormentando Clarice por conta do empréstimo de um livro. O professor de “Os desastres de Sofia” realmente percebeu o tesouro que Clarice menina escondia. E “Come, meu filho” é um claro diálogo entre a autora e seu filho.

Nada diferencia esses contos, escritos para serem crônicas, de outros contos que aqui estão, escritos para serem contos e publicados anteriormente no livro A legião estrangeira. Seus textos podem ser desmontados, desfeitos em pedaços – até mesmo diferentes dos fragmentos originais – sem que se perca sua intensidade. Cada palavra ou frase dessa escritora sem igual origina-se em camadas tão fundas do ser, que traz consigo, mais do que um testemunho, a própria voltagem da vida.

— MARINA COLASANTI, Jornalista e escritora. Prêmio Jabuti para Eu sei, mas não devia e Rota de colisão.”


Perto do coração selvagem

O surgimento de Perto do coração selvagem, em 1943, causou grande impacto no cenário literário brasileiro, proporcionando à autora aclamação imediata da crítica e de seus colegas escritores.

Houve quem encontrasse no livro a influência de Virginia Woolf, ao passo que outros apostavam em Joyce, seguindo a falsa pista da epígrafe da qual Clarice pinçou seu título: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida.” Ambos os grupos estavam errados, apesar do uso do fluxo de consciência pela escritora estreante a justificar tais correlações. Ocorre, no entanto, que esse havia sido um achado natural e espontâneo para Clarice Lispector, que admitiu como única influência neste caso O lobo da estepe, de Hermann Hesse.

Não em termos estilísticos tampouco por se identificar com o caráter do protagonista, mas sim por compartilhar com ele e, sobretudo, com Hesse, o desejo imperioso de romper todas as barreiras e ultrapassar todos os limites na busca da própria verdade interior. Anseio personificado pela personagem central, Joana, com uma expressão que se tornou célebre: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”

Íntima e universal, destemida e secreta, Joana “sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as mulheres” e ela destoava do sistema patriarcal em que se encontrava inserida da mesma forma que Clarice se distanciava da literatura de seu tempo, ainda dominada pelo regionalismo e o realismo. Ambas, autora e protagonista, eram forças divergentes, porém não dissonantes, já que introduziam uma nova musicalidade, uma harmonia própria, poética e triunfal, na aspereza circundante, enquanto buscavam “o centro luminoso das coisas” sem hesitar em “mergulhar em águas desconhecidas”, deixando o silêncio e partindo para a luta.

Deste embate à beira do íntimo abismo, Joana torna-se uma mulher completa e Clarice, uma escritora singular e inimitável.”


A Bela e a Fera

A bela e a fera é uma das obras de Clarice Lispector que exalam a capacidade criadora e o poder de imaginação da estrela maior da literatura de autoria feminina no Brasil. As ideias que nutrem estes oito contos, escritos em 1940 e 1941 (parte I) e 1977 (parte II), recriam uma atmosfera a partir de situações cotidianas corriqueiras que termina por despertar no leitor a sensação do insólito que há em nossas vidas. Ninguém consegue ficar indiferente a essas ideias. Elas estimulam o lado mais criativo e belo que há em cada um de nós, talvez porque “o nascimento de uma ideia é precedido por uma longa gestação” – como nos diz a narradora de “História interrompida”.

Leitora de Heidegger, Clarice nos transmite a visão de que a tranquilidade e a normalidade do cotidiano são aparentes, e o que importa é uma compreensão mais profunda do ser humano. Capaz de construir enredos e personagens inusitados a partir das situações mais banais que cada um de nós vivencia, ela nos dá a chave para romper com uma realidade que em geral é vista como imóvel ou imutável. Por isso, esta obra, como todas as suas outras, é uma lição de vida. O tom confessional de diário, de conversa ao pé do ouvido, que é a tônica de seu estilo, registra, nestes contos, a enigmática reação das personagens femininas contra a repressão patriarcal, e mostra que a conquista da independência da mulher passa pela busca do próprio eu: “Senti que podia. Fora feita para libertar. Libertar era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores” – já descobrira Tuda, a protagonista adolescente de “Gertrudes pede um conselho”.

— Luiza Lobo, Professora da Faculdade de Letras da UFRJ, escritora e tradutora


A Legião estrangeira

Organizado pelas professoras Teresa Montero (doutora em Letras pela PUC/Rio e biógrafa de Clarice Lispector) e Lícia Manzo (mestre em Literatura brasileira pela PUC/Rio, dramaturga e diretora de teatro e TV), “Outros escritos” é o complemento indispensável à obra completa de Clarice Lispector. Isso por reunir textos inéditos, dispersos ou de acesso restrito de importância capital para o entendimento da obra clariceana, como sua única peça teatral, A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS, escrita no começo de sua carreira e testemunho do seu interesse pela dramaturgia, que a levou a traduzir peças de autores consagrados como Ibsen, Lillian Hellman, Mishima e García Lorca.

Dessa prova de poder e de relativa independência da língua, extrai-se a própria substância de uma arte verbal capaz de articular diferentes tipos de registros, que obedecem à variedade e mutação dos estados de espírito, bem como à variedade e mutação das experiências (observadas ou imaginadas, sempre intensamente vividas).

Precaver-se ante a palavra e a ela entregar-se, eis o modo possível e laborioso de escrita – ajustar língua, conhecimento, percepção e disponibilidade. Infiltrar, assim, no espaço do habitual, orações complexas, desdobráveis, provocadoras de grandes distúrbios de rumos e de expectativas, ao lado de frases retas, curtas, certeiras e velozes. Feitas, por vezes, de um fervor só encontrável nos grandes textos místicos. Todo um mundo de segredos e de revelações. Aqui está a vida – pela palavra – sendo gerada aos nossos olhos, com seus contrastes de forças, seu regredir e avançar, a conquista da soberania e da humildade. Com o esforço e a destreza exigidos, surpreende-se o que se processa com inteligência arqueológica até surgir como se nascesse do puramente espontâneo, acompanhando, portanto, os inúmeros cálculos necessários para que se construa a longa e quase atemporal história dos corpos. Esculpe-se, nas sentenças, a alma. ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS, Professor de Teoria da Literatura e de Semiologia do curso de graduação e de pós-graduação em Letras da UFRJ


A via crucis

Cuidado, leitor, este livro requer coragem. Parece ser o desafio lançado por Clarice Lispector no prefácio “Explicação” de A via crucis do corpo, livro de 1974. Nele, a autora simula uma Clarice diferente da que os leitores estavam acostumados desde sua primeira obra, Perto do coração selvagem, de 1944. No entanto, ela é a mesma de sempre, a que nunca se recusou a fitar com os olhos abertos a selvageria do desejo humano, da avidez humana, da sordidez humana. O que se modificou foi o espanto se convertendo em escândalo, o sobressalto em ferocidade. Neste livro, Clarice está próxima à literatura maldita ou, como quer Georges Bataille, próxima à literatura do mal. Afrontando os limites morais, a autora adverte: “Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências nas histórias a culpa não é minha.” O deslocamento da noção de indecência para o âmbito total da realidade cria um estado de perplexidade no leitor que poderá levá-lo a exclamar como a própria narradora de um dos contos: “A vida era isso, então? essa falta de vergonha?” São 14 textos ficcionais – 13 contos mais o prefácio “Explicação” – compondo para o leitor um panorama de vicissitudes do corpo – o grande personagem destas histórias. O corpo nos seus desarranjos pulsionais, na tirania de seus desejos, nas suas fraturas e feridas, nos seus êxtases. O corpo como bênção e maldição. Como tudo que excede, o que sobra, mas que não chega nunca a suprir a falta primordial. Enigmático e severo, óbvio e exultante.

Além do ousado tratamento temático da paixão do corpo (paixão entendida etimologicamente como pathos), o estilo de Clarice está mais depurado e enxuto neste pequeno livro. À primeira vista, se poderia pensar no estilo realista. Não se engane, todavia, leitor: nada é tão simples nem tão evidente quanto parece. O realismo destas histórias encontra-se sob forte pressão e o efeito é sempre desconcertante, tal como no detalhe final do fecho narrativo do conto “Melhor do que arder”:

“Tiveram quatro filhos, todos homens, todos cabeludos.”

Aceite o desafio e enfrente o desconcerto, caro leitor. A literatura de Clarice tem força.

— ANA CRISTINA CHIARA, Profª. Adjunta de Literatura Brasileira na UFRJ


Outros escritos

Organizado pelas professoras Teresa Montero (doutora em Letras pela PUC/Rio e biógrafa de Clarice Lispector) e Lícia Manzo (mestre em Literatura brasileira pela PUC/Rio, dramaturga e diretora de teatro e TV), “Outros escritos” é o complemento indispensável à obra completa de Clarice Lispector. Isso por reunir textos inéditos, dispersos ou de acesso restrito de importância capital para o entendimento da obra clariceana, como sua única peça teatral, A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS, escrita no começo de sua carreira e testemunho do seu interesse pela dramaturgia, que a levou a traduzir peças de autores consagrados como Ibsen, Lillian Hellman, Mishima e García Lorca.

Encontram-se aqui textos produzidos em seus tempos de faculdade de Direito (debatendo questões cruciais, como o direito de punir), suas primeiras incursões no jornalismo (como repórter da Agência Nacional) e anotações íntimas extraídas de cadernos de notas. Assim como sua única incursão no terreno dos estudos literários, a tão falada (mas pouquíssimo conhecida) conferência “Literatura de vanguarda no Brasil”, cujo sucesso da primeira apresentação na Universidade do Texas em 1963 motivou reapresentações em instituições brasileiras. Texto que demonstra inequivocamente que Clarice não era uma escritora preocupada apenas com a própria obra e encastelada em torre de marfim, e sim uma autora sintonizada com as preocupações da literatura de seu tempo e dotada de real capacidade de pensamento crítico, muito embora alegasse não se interessar por questões teóricas e históricas.

Fecha o conjunto um documento incontornável: a transcrição da entrevista por ela concedida (em 20 de outubro de 1976) ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, com a participação dos amigos Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti e do diretor do MIS, João Salgueiro. Trata-se da primeira vez em que Clarice discorreu livremente acerca de sua vida e da sua literatura.

Posfácio de Nélida Piñon

Compilado por: Teresa Montero e Lícia Manzo


Já pensou ter uma biblioteca digital para a sua biblioteca ou instituição de ensino? Entre em contato com a gente e conheça nossos pacotes.


Clique aqui